Foram os trovões que a acordaram. Estava descoberta, e o fato de estar nua a incomodou. Agarrou um lençol e improvisou uma toga da melhor forma que pôde. Não ia se dar ao trabalho de procurar suas roupas no escuro. Olhou pro homem que dormia a seu lado. Parecia morto. Passou os dedos perto do nariz dele só pra se certificar que ele ainda respirava. Sentiu o sopro leve e suspirou aliviada. Mas por que se preocupar com o fato dele ainda estar vivo? Não estiveram bem acordados até poucas horas atrás? A verdade é que ele sempre parecia morto. Quase sempre, na verdade. Só parecia verdadeiramente desperto quando fazia sexo com ela. Não que ela estivesse se queixando de alguma coisa. Só queria saber onde estaria a mente dele quando ele parecia encarar o nada.Sentou-se e girou o corpo de forma a colocar as pernas pra fora da cama. Ia se levantar, mas por um instante teve medo de acordá-lo. Amava ele, mas era bom estar a sós consigo mesma naquele momento. Calculou os movimentos de forma a fazer o mínimo de barulho possível e só então se levantou. Tateou as paredes em direção ao banheiro, e só se sentiu segura pra acender a luz depois de ter fechado a porta. O grande espelho oval sobre a pia só confirmava o que ela já sabia: era bonita e continuava perfeita mesma de cabelos emaranhados e enrolada num lençol. Procurou por uma escova e encontrou uma na gaveta do móvel da pia. Não deixou de perceber o fio comprido de cabelo preso às cerdas da escova. Era castanho, da mesma cor dos cabelos dela. Mas o fio tinha um brilho dourado, e ela sabia muito bem a quem ele pertencia.
Ridículo, não acha? Até um único fio de cabelo dela parece mais especial do que você inteira.
Arrancou o fio da escova com raiva e o jogou no vaso sanitário, dando descarga.
Pronto. Agora você está onde merece.
Começou a escovar os cabelos com raiva, como se isso a fosse livrar dos pensamentos obscuros. Escovou até se livrar de todos os nós, fazendo o possível pra deixar o máximo de fios presos à escova. Aquele era o seu território agora. E essa era a sua forma de marcá-lo. Guardou a escova onde a havia encontrado e se preocupou em lavar o rosto. Ainda estava com a maquiagem do dia anterior, que agora se encontrava borrada. Definitivamente, não estava parecendo uma dama. Abriu a torneira e juntou as mãos em concha, jogando a água fria no rosto de uma vez. O contato repentino fez com que se arrepiasse. A água estava muito fria. Sentiu seu corpo se arrepiar. Alguém estava atrás dela.
Virou-se, com o rosto ainda pingando. Claro que não era ninguém. Aquela maldita casa antiga mexia com seus nervos. Os pisos rangiam e havia ratos no sótão. Ela podia convencê-lo a se livrar daquela velharia de uma vez por todas e investir seu dinheiro em algo que valesse a pena. Como ela, por exemplo. Voltou-se para a pia novamente e viu a escova sobre o tampo escuro da pia. Mas ela não a tinha acabado de guardar? A escova ainda tinha vários fios castanhos. Mas todos agora exibiam aquele característico brilho dourado que ela só viu nos cabelos de uma pessoa. A pessoa que ainda detinha o coração de seu amante. Guardou a escova novamente, tentando acreditar que só estava um pouco atrapalhada por causa da casa e se concentrou em lavar o rosto. Alcançou a toalha ao lado da pia e ergueu a cabeça pra se mirar no espelho mais uma vez.
- Oh!
Soltou todo o ar de seus pulmões num grito abafado de espanto. A toalha lhe cobria a boca, mas o som reverberou pelo banheiro. Atrás dela estavam cachos. Cachos castanhos com suaves reflexos dourados, quase até os quadris. Mas aquele não era o cabelo dela. Definitivamente havia alguém parada atrás dela. Ela se virou lentamente, tremendo e rezando pra que aquilo fosse só sua imaginação.
É claro que não havia ninguém.
Agarrou-se à toalha com mais força, como se segurasse em suas mãos uma arma poderosa. Os olhos se moviam de um ponto a outro, procurando evidências da presença de mais alguém por ali. Ela deu um tapa no próprio rosto pra tentar recuperar a sanidade. Foi quando uma lufada de vento abriu a porta do banheiro e ela sentiu um empurrão na altura do peito. Caiu sentada na privada. Como a tampa estivesse levantada, ela se viu entalada. Mas por mais ridícula que fosse a sua situação, o medo ainda a impedia de gritar.
Um riso debochado ecoou pelo aposento. E alguém sussurrou-lhe no ouvido.
- Pronto. Agora você está onde merece.
Era o suficiente. Começou a gritar e a chamar pelo amante, desesperada. Ouviu os risos ficarem mais altos. Tentava se erguer da privada, mas o afobamento fazia seus pés e mãos escorregarem nos azulejos lisos. Gritou com mais vontade. Foi quando viu o grande animal escuro vindo na sua direção. Ela podia ver o brilho amarelado de seus olhos e as presas grandes e brilhantes. Devia ser muito maior do que um homem. Ele arfava e fazia barulhos estranhos. E vinha na direção dela.
- Socorro! Por favor, alguém me ajude!
Então ela desmaiou.Acordou mais tarde, com um bafo quente no rosto. De repente, lembrou-se de tudo. O animal estava ali e ia devorá-la viva! Manteve os olhos fechados pra não ter de encarar a besta sanguinária que já estava tão próxima.
- Ei.
Ela reconhecia a voz do amante. Relutou um pouco, mas abriu um olho. Realmente, a besta estava ali.
- Sai já daí.
O animal obedeceu e saiu de perto dela, indo se juntar ao homem. Ela abriu os dois olhos e passou a encarar os dois com expressão abobalhada. Era um dinamarquês. Um cachorro extremamente grande. Mas ainda assim, um cachorro.O homem se aproximou e estendeu a mão a ela, sem dizer palavra. Ele estava sem camisa e com o louro cabelo desalinhado. Era um deus lhe estendendo a mão. Ela se sentiu como Adão na famosa pintura de Michelangelo que decorava o teto da Capela Sistina. Só que ela não era Adão. E estava entalada no vaso sanitário. Com um puxão vigoroso ele a soltou, colocando-a de pé.
- O que estava fazendo?
- Devo ter cochilado e tido um pesadelo. – mentiu ela.
Ela se considerava uma pessoa perfeitamente sensata e não era do tipo que “ouvia coisas”.
O cachorro mantinha-se do lado do homem fielmente até que algo muito interessante chamou-lhe a atenção. Ele pôs-se a farejar o chão furiosamente até encontrar o que procurava. Começou a rosnar. O homem puxou o animal pela coleira pra ver com o que o bicho tinha encrencado. Era uma escova de cabelo. Ela se sentiu enjoada, mas estava grata pelas companhias inesperadas.
- Vou tomar um banho e já vou dormir.
Deu um beijo no rosto dele e o viu voltar pra cama. O cachorro continuava no banheiro, encarando a escova. Ela, por sua vez, decidiu não colocar mais as mãos naquilo.
São os piores tipos de fantasmas. As lembranças de amores do passado., pensou consigo mesma.
Do lado de fora da casa antiga, uma mulher sorria
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